Mais do que a maestria na aplicação da técnica de sombra e luz, o preto e o branco nas fotografias de German Lorca (1922) criam cenas e atmosferas que parecem de um clássico de cinema. São cenas eternizadas em uma São Paulo com garoa, de bairros tradicionais, como o Brás, o Bixiga, a Móoca, o interior da capital paulista e seus personagens anônimos sem rosto, expressos apenas em silhuetas, em composições geométricas.
O guarda-chuva e a parte inferior de pernas –igualmente desconhecidas – são elementos recorrentes em outras imagens impregnadas de mistério e poesia. O rosto ganha expressão em retratos de personalidades como do fotógrafo francês Pierre Verger, que apaixonou-se pela Bahia, da atriz Bibi Ferreira e do inesquecível costureiro Denner Pamplona de Abreu. Ou ainda o movimento em cenas de natureza-morta.
Independente do tema, as imagens de Lorca parecem estabelecer um diálogo entre a cena e o observador. Como afirma o curador de fotografias da Pinacoteca do Estado de São Paulo e responsável pela concepção desta mostra, Diógenes Moura, que diz só entender de fotografia vendo-a como literatura. É essa literatura, construída por German Lorca ao longo de 60 anos de trabalho, que o Museu Oscar Niemeyer tem o orgulho de apresentar na exposição Fotografia como Memória. Mostra que resgata a obra do premiado fotógrafo e, ao mesmo tempo, confirma a importante contribuição de German Lorca à fotografia brasileira.
Images
foto: German Lorca
foto: German Lorca
foto: German Lorca
foto: German Lorca
foto: German Lorca
foto: German Lorca
foto: German Lorca
foto: German Lorca
foto: German Lorca
foto: German Lorca
foto: German Lorca
foto: German Lorca
foto: German Lorca
Alguma coisa entre Susan Sontag, Borges e German Lorca
Você gostava de dizer que todo momento do tempo contém o passado e o futuro, citando (se bem me lembro) o poeta Browning, que escreveu algo como “o presente é o instante em que o futuro se desfaz para dentro do passado”.
Susan Sontag, em Uma carta para Borges
Toi et Moi é o nome do livro do poeta francês Paul Géraldy que German Lorca “decorou”, inteirinho, ele e um amigo, para recitá-lo diante das suas futuras paixões. Mas, um dos poemas, o transportou para dentro da literatura exatamente quando o poeta desiste: “Leve-as! Não quero ver essas fotografias que falam de nós dois, que contam nossa história. Minhas saudades são mais lindas na memória”. Lorca escreveu o contrário: “Deixe-as, sempre quero ver essas fotografias que contam a nossa história”. São assim as fotografias desse homem, hoje aos 84 anos. São como literatura, saídas de páginas nuas, dos seus olhares mais profundos sobre a própria vida e a vida da sua cidade, São Paulo, desde aquela primeira imagem, em 1947, onde os bondes em preto e branco incendeiam uma revolta para protestar contra o aumento da passagem e já contam uma história, na fotografia e nos tempos da cidade e daquele fotógrafo que começava, ali, e para sempre, a não permitir que o país acabasse perdendo a sua própria memória, tão tênue, a memória brasileira, escapulindo até os dias de hoje, como água embrulhada.
“Sempre serei romântico. Estaria morto sem a poesia”, confessa Lorca, mais de seis décadas depois de ter “decorado” o tal livro. Sontag escreve que Borges, por causa da noção de tempo, os fez juntos, o passado e o futuro. Lorca fotografou as pernas de uma mulher entre pernas de mesas e essa fotografia nunca mais terá fim: o passado, o futuro. Como torná-los uma só coisa? Como romântico e como poeta, Lorca cravou a fotografia para sempre na sua memória. E deixou algo estatelado aos nossos olhos: farto em sentimentos, não negou nada, nem ali, nem em lugar nenhum. Nunca foi capaz de negar: seguiu os passos da cidade e seus reflexos sob a chuva; fez um chapéu, um missal e um mantô negros falarem de costas o que aquele padre pensava enquanto olhava os aviões subirem e descerem, no aeroporto de Congonhas. Coisas que fotografia alguma terá a capacidade de esquecer. Essas coisas que tocamos com os olhos porque com as mãos serão marcas e digitais.
German Lorca é autor de uma trama fotográfica excepcional, onde a ação e o artista parecem não terem tido conflitos maiores, por mais que eles tenham existido e existam. Nada é precário em seus planos. O que temos é uma fotografia de semblantes. Com o olhar como o de um mestre do cinema, algumas das suas imagens fazem da organização do espaço, da entrada da luz, da presença das sombras e do jogo de formas algo como uma operação semiótica entre sentido e complexidade, mas, sobretudo, emoção. O que torna cada uma dessas fotografias ainda mais definitiva, quando temos quase a conclusão final do grande colapso que estamos passando diante desse sentido, ou sentimento – a emoção. Tudo é caríssimo na fotografia e na vida desse artista. O simples detalhe do bastidor de uma janela aberta, lá naquela casa, no Brás, onde viveu, refletindo a casa vizinha, em frente, ganha uma proporção geométrica capaz de deter a sintonia entre tempo e espaço, e nos deter diante do tempo. Esse gesto, essa coisa interior e paralela, cria, ao mesmo tempo, uma face única que se sublima como se Lorca colhesse sempre o último momento daquilo que vê, o primeiro momento que aproxima um século do outro, como se tudo fosse mesmo uma questão de instantes.
Sontag, finalmente, falou o que tanto esperávamos sobre Borges: “Em algum ponto, você disse que um escritor – por delicadeza acrescentou: todas as pessoas – deve pensar que o que lhe acontece é uma riqueza. (Você se referia à sua cegueira).” Géraldy não era cego, mas preferia saber das saudades na sua memória a olhar fotografias. Lorca não. Lorca quis ver tudo: “Deixe-as, todas!”. E assim ele as viu. E nós as vemos agora, 60 anos depois. Sem tempo algum. Nenhum tempo separa uma fotografia da outra. Todas são uma só. Apenas uma fotografia atravessou seis décadas. Desde aquela primeira. Quando a cidade gritava. Desde o livro de poemas inteirinho “decorado”. Desde a luz entrando pela janela. Sontag chama Borges de “meu caro”. Lorca pede, por favor, “para que, de uma saudade na memória de um fotógrafo, não o faça um historiador”. Sontag diz que Borges deu às pessoas maneiras novas de imaginar. Lorca continua imaginado a vida inteira. Géraldy diz: “Leve-as”. Lorca responde: “Deixe-as!”.
Diógenes Moura
Curador de Fotografia
Pinacoteca do Estado de São Paulo
Exposição virtual
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