Há anos o fotógrafo Orlando Azevedo (1949) produz marinhas, denominadas arqueologia da morte, em que animais mortos e objetos em deterioração são recolhidos como “náufragos da existência”, conforme define o próprio autor. Trata-se de um olhar da morte como “a grande viagem da passagem e da vida”, na qual a fotografia, em um resgate da memória, promove a ressureição da extinção.
Arqueologia porque reconstitui o que foi a vida e o que foi desejo, porque insinua que o tempo foi interrompido, que a morte evidente dos restos apela para a vida que foi, analisa a historiadora portuguesa Maria do Carmo Séren. Com o patrocínio da HP-Brasil e da Canson Infinity Brasil-Indústria de Papéis Especiais e o apoio do Governo do Paraná, da Secretaria de Estado da Cultura e da Caixa, é com satisfação que este Museu exibe Marinhas – Arqueologia da Morte.
A natureza rizomaticamente enigmática da realidade – essa realidade onde os opostos não o são, antes lutam e coexistem com a despreocupação duma lógica que ignoramos, - deveria ter-nos ensinado que a alteridade é a regra do mundo, onde tudo é e não é, onde o bem e o mal coincidem, onde a diversidade não oculta o corpo único da nossa desorientação.
Talvez por isso mesmo o espírito barroco domine hoje os nossos desvarios e as nossas reflexões. Foi dentro deste alerta do espírito crítico sobre o enigma do trânsito das coisas, que mudando, não deixam de ser o mesmo, que Orlando Azevedo nos apresenta a sua espantosa colecção de desperdícios do mar, restos em decomposição de peixes ou aves, ossos, espinhas e cartilagens ósseas, invólucros ou conchas de vidas pretéritas, restos orgânicos de esgotamento, imprevidência ou devoção alheia, mas também objectos fabricados que reforçam o arrepio das coisas mortas e dos seus efeitos: a oxidada tesoura, o cutelo de ferro, o ursinho sacrificado. É arqueologia porque nos reconstitui o que foi vida e o que foi desejo; porque nos insinua que o tempo foi interrompido, que a morte evidente dos restos apela para a vida que foi. Os restos mais perturbadores anexam o horror barroco da emoção: os pássaros que apenas habitaram a água por desleixo e por ritual, desprotegidos do seu antigo esplendor e reduzidos a quimeras adivinhadas. O mar recusou-os e devolveu-os.
O espírito barroco vive de analogias, metáforas e alegorias; das tonalidades envelhecidas, muito quentes e muito frias, da solenidade e do artifício da apresentação; da ênfase e do enigma. Enfatiza o vivo e o morto, afirma que o enigma do mundo não é a mudança, mas o facto de, da mudança, permanecer o mesmo. O espírito enigmático que norteou a rica e luxuosa colecção produzida por Orlando de Azevedo, onde o belo se produz na encenação do horrível, insinua-nos a ideia de petrificação, onde se perfilam mitos de sempre que a ciência desdenha e assume e a fotografia representa. O que une os restos orgânicos é a arqueologia da morte, mas também práticas para a ignorar; os restos fabricados, sucedâneos do desejo ou congratulação com a morte, falam do homem e da sua apropriação da vida. E Orlando Azevedo em imagens a que não podemos fugir, centrou-se na experiência barroca: a coincidência entre o racional e o irracional, do saber pragmático orientado para a acção com um pensamento deliberadamente indeterminado, mas com um código simbólico que bem traduzimos, nesta era de movimentos pacifistas, ecológicos e emotividade das novas religiões.
Num cenário solene de excesso de morte e de efemeridade das coisas e dos quereres, a poética do enigma justifica a vida. O mar é também a areia, as rochas, o medo e a imensidão mutante e permanente.
O enigma, - este enigma que “Marinhas” como Arqueologias da Morte anunciada nos propõe, representa também a religião da beleza que nos guia. A solenização é do objecto e do símbolo, não do corpo como o que foi vida, mas como um modo, uma paisagem. O espírito barroco usou o enigma prático, aquele que ia criando a luxuriante mudança do mesmo e faz a arqueologia do saber sobre a vida: é disso que Orlando de Azevedo nos fala.
Maria do Carmo Séren
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